Quais os possíveis impactos positivos e negativos do Marco Legal das Startups?
Atualmente tramita no congresso nacional o Projeto de Lei Complementar n° 46/2019 que aguarda apreciação pelo Senado Federal. O projeto vem sendo chamado de Marco Legal das Startups e sua aprovação recentemente se tornou uma das prioridades do governo.
Devido a nossa atuação junto ao ecossistema das startups e no cenário de inovação brasileiro, já acompanhamos esse projeto com interesse há algum tempo e por meio desse artigo pretendemos consolidar nossas avaliações e contribuir para o amadurecimento da discussão sobre as novidades legislativas que podem surgir.
Projeto promissor, mas com algumas ressalvas
Primeiramente, entendemos relevante e positivo um projeto de lei dedicado ao ecossistema das startups, já que o mais próximo que temos atualmente é a Lei Complementar n° 167/2019, chamada de “Inova Simples”. O projeto em tramitação, vai muito além disso e tem foco concentrado no cenário das Startups e incentivo à inovação.
Essas novas iniciativas legislativas como um todo são benéficas para a evolução do tema no Brasil e para a intensificação do debate, tanto para os 3 (três) poderes quanto para a sociedade civil, empreendedores e comunidade acadêmica.
De uma forma geral, entendemos que o projeto possui mais méritos do que defeitos. Contudo, nenhuma lei é perfeita e na sequência apontaremos algumas questões que talvez necessitem de maior aprofundamento ou que causam certos receios assim como as que consideramos dignas de aplausos.
Definições excessivas podem excluir agentes de forma injusta
Os Arts. 2º e 3º do projeto de lei trazem uma série de “definições” que, a nosso ver, são excessivas. Na verdade, entendemos que, de maneira geral, quando a lei tenta “definir demais” o resultado acaba não sendo positivo.
Neste caso, as definições são de tal modo detalhadas, em alguns pontos com critérios subjetivos, que tememos que elas acabem por excluir, de forma injusta, alguns membros do ecossistema.
Apenas a título de exemplo, vejamos o Art.2º:
Art. 2º Considera-se startup a pessoa jurídica constituída em quaisquer das formas legalmente previstas, cujo objeto social principal seja o desenvolvimento de produtos ou serviços inovadores de base tecnológica com potencial de rápido crescimento de forma repetível e escalável.
Primeiramente, o termo “potencial de rápido crescimento” se mostra extremamente subjetivo. Obviamente que para todo empreendedor seu projeto tem potencial, mas, como sabemos, a realidade é outra, o que se percebe muitas vezes quando o empreendedor tenta validar o seu produto e pelo alto grau de mortalidade das startups.
Ainda, o conceito de “rápido” é muito subjetivo. Sabemos que o prazo para as startups saírem do “Vale da Morte” pode durar 5 (cinco) anos ou mais e esse crescimento exponencial apenas se concretiza quando a empresa já se encontra com o produto desenvolvido.
Se isso não fosse o bastante, para os fins do projeto, uma empresa precisa atender a muitos requisitos a fim de ser considerada uma startup. À primeira vista eles nos parecem ser cumulativos, o que não é positivo e novamente pode excluir agentes de inovação.
Para ser considerada uma Startup, nos termos do projeto, a empresa precisa:
(a) desenvolver um produto ou serviço inovador;
(b) que o produto ou serviço inovador tenha base tecnológica;
(c) que tenha potencial de rápido crescimento;
(d) que o crescimento seja repetível;
(e) que o crescimento seja escalável.
O projeto nos parece ter se inspirado nas lições de Steve Blank, uma das maiores referências em empreendedorismo no vale do silício:
Uma startup não é uma versão menor de uma grande companhia. Uma startup é uma organização temporária em busca de um modelo de negócio escalável, recorrente e lucrativo (Blank, Steve. Startup: Manual do Empreendedor. Rio de Janeiro, Alta Books, 2014. Edição do Kindle.).
Apenas para elucidar como a definição de Startup sequer é uma unanimidade, tem-se a definição de Eric Ries, no clássico “A Startup Enxuta”, que já se mostra diversa do conceito apresentado pelo projeto de lei:
“O conceito de empreendedorismo incluiu qualquer pessoa que trabalha dentro da minha definição de startup: uma instituição humana projetada para criar novos produtos e serviços sob condições de extrema incerteza.” (RIES, Eric, A Startup, Rio de Janeiro, Leya, 2012, Pg.07)
Sociedade Anônimas simplificadas são um dos principais pontos positivos
A criação das chamas SAS é, sem dúvida, um ponto que merece aplausos. Tal modalidade societária é um anseio antigo dos empreendedores como um todo, se mostrando muito relevante no ecossistema de inovação.
As startups, principalmente as em fase early stage, de forma geral, compartilham duas características principais que são a ausência de recursos e a necessidade de investimentos externos. A princípio pode até parecer que se trata apenas de um único ponto, mas cada um tem implicações distintas.
Por estar em estágio inicial, a maioria das Startups acaba sendo aberta como uma Sociedade Limitada e em alguns casos até como o MEI ou Eireli, que se mostram com custos de manutenção muito mais acessíveis do que as Sociedades Anônimas.
Todavia, as Sociedade Limitadas não apresentam uma estrutura ágil que beneficie a captação de investimentos externos, de forma que as Sociedades Anônimas são muito mais adequadas para esse fim.
A criação das Sociedade Anônimas Simplificadas tem o potencial de suprir essa lacuna tão problemática para os empreendedores, inclusive com a previsão de enquadramento no Simples Nacional.
A dúvida que nos paira, neste ponto é se no caso de uma pessoa jurídica (investidor anjo, aceleradora ou incubadora) ingressar na sociedade por meio da efetivação do investimento, isso desenquadraria a Startup do Simples Nacional.
Mesmo com a redação da parte final do Art. 4º, que acrescenta o Art. 294-A na lei das S/A, tal ponto, no nosso ver fica nebuloso. Sendo assim, entendemos que tal ponto deveria ser aclarado ainda nas tramitações no congresso, sendo o mais recomendável que, mesmo que o investidor pessoa jurídica ingresse no quadro societário da startup, isso não implique no desenquadramento desta do Simples Nacional.
Mais proteção para os investidores
O Art. 7º da lei protege os investidores contra dívidas da empresa, sendo muito claro quanto à não aplicação da desconsideração da personalidade jurídica contra a figura dos Investidores.
Esse é outro ponto que se mostra de extrema relevância. Primeiramente, todo o reforço ao instituto da personalidade jurídica é de extrema relevância no Brasil, já que atualmente tal instituto se encontra gravemente debilitado devido ao fato das chamadas teorias “menores” da desconsideração terem se tornado a regra geral, principalmente quando se trata de processos trabalhistas.
É verdade que já tivemos a promulgação da Lei n° 13.874/2019, chamada de “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, que foi, também, dentre outros pontos, um reforço à personalidade jurídica, contudo, entendemos que é necessário ir além para efetivamente restabelecer o instituto e o projeto dá um passo positivo nesse sentido.
É evidente que em casos de fraudes e ou tentativas maliciosas de ocultação de patrimônio a desconsideração da personalidade jurídica é o remédio cabível. Contudo, o risco é inerente à atividade econômica e a figura da empresa é essencial para minimizar esse risco e incentivar a economia, produção de empregos e arrecadação de imposto.
No caso o negócio não seja exitoso, o empreendedor deve ser estimulado a tentar novamente, não a responder com todo o seu patrimônio pessoal, praticamente impedindo-o de realizar uma nova empreitada e condenando-o ao fracasso.
Pois bem, como se sabe, a maioria dos investimentos em startups são realizados via mútuo conversível em participação societária ou contrato de investidor anjo, este último que muito se assemelha ao primeiro e possui, inclusive, previsão legal no Art. 61-A, da LC n° 123/2006.
Em regra, o investidor pode escolher se irá integrar os quadros da empresa como sócio ou se irá optar pela devolução do numerário investido, após o final do prazo do contrato.
Não encontramos decisões judiciais enquadrando o investidor como sócio da empresa, todavia, já escutamos diversos investidores com esse receio.
Tal tese nos parece teratológica e sem qualquer amparo legal e algo que seria inclusive um desestímulo ao investimento em startups que, como já dito, possuem, naturalmente, um alto índice de mortalidade; via de consequência acabaria por ser uma trava para todo o ecossistema de inovação.
Assim, referido artigo se mostra pertinente e de suma importância, pois deixa claro que, no caso de quebra da startup, o investidor perderá “apenas” o dinheiro investido. Mas, da mesma forma, o dispositivo apresenta lacunas que necessitam ser solucionadas.
Na operação de mútuo conversível, bem como investimento anjo, caso se opte pela conversão em participação societária, o investidor se tornará sócio da empresa, comumente chamado de “Sócio Investidor”.
Todavia, neste caso, o Investidor passa a ter as responsabilidades e riscos de Sócio da empresa. A dúvida que surge aqui é se incidiria a regra do Art. 1.003, parágrafo único, do Código Civil, mesmo que o investidor permaneça na sociedade por tempo curto ou transitório, nos termos do Art.3º do projeto.
Nos parece que a ideia do legislador é afastar a norma do Art. 1.003, parágrafo único, nestes casos; contudo, é outro ponto que nos parece merecedor de aprofundamento, bem como uma definição objetiva do período que seria considerado “transitório” (um mês, um ano, cinco anos etc).
Da mesma forma, notamos uma proteção mais sublime para a figura dos mentores, das aceleradoras e incubadoras por meio do Art. 16, que incluiu o §11 no Art. 61-A, da LC n.° 123/06.
Nele, fica claro que a “supervisão ou aconselhamento” não serão considerados como exercício de poder. Para nós, prima facie, isso demonstra que os mentores, aceleradoras ou incubadoras não serão considerados como administradores da empresa ou de qualquer forma, sócios ocultos, o que reforça a proteção contra eventuais incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
Concluindo este ponto, a proteção concedida aos investidores, bem como a figura dos mentores, aceleradoras e incubadoras se mostra pertinente e positiva.
Incentivos aos investimentos
Por fim, destacamos o Art. 16 do projeto, que trata de incentivos a investimentos. Vemos com bons olhos a tributação regressiva dos rendimentos decorrentes de aporte de capital sob a modalidade de investimento Anjo.
A palavra risco ou incerteza é cotidiana para os integrantes do ecossistema de inovação e o §10 do Art. 61-A, incentiva o investidor a tomar risco já que quanto mais tempo o investidor dilatar o prazo de seu mútuo, leia-se quanto mais risco ele aceitar, menos tributo ele irá pagar.
Esse incentivo é de extrema relevância pois aumenta o interesse do Investidor anjo na operação que já é, por natureza, arriscada.
Veja que as recomendações feitas aos investidores anjo é que aloquem um percentual de seu patrimônio que não será preciso contar no futuro.
“(...)valores a investir, minha recomendação é que o investidor-anjo calcule do seu patrimônio, qual porcentagem não irá precisar para qualquer eventualidade, pois o investimento-anjo provavelmente será seu investimento de maior risco, tanto de perda do capital quanto de falta de liquidez, assim, é melhor separar estes recursos e desconsiderá-los para quaisquer outras necessidades atuais ou futuras.” (Spina, Cassio. Investidor Anjo - Como Conseguir Investimento para Seu Negócio (pp. 64-65). Edição do Kindle.)
Acreditamos, todavia, que tal incentivo deveria ser mais amplo e não apenas ao contrato de investidor anjo nos moldes do Art.61-A da LC.123/06.
Projeto ainda merece algumas discussões
Não tivemos, de forma alguma, a intenção de exaurir o tema, que, aliás, é tão rico e ainda subestimado no Brasil, mas por meio deste artigo, procuramos trazer à baila alguns pontos que consideramos positivos no PLP.146/2019 e alguns outros que nos geram dúvidas e preocupações.
De maneira geral, entendemos que o PLP n° 146/2019 se mostra mais positivo do que negativo, precisando ainda de algumas melhorias, mas sem dúvida se mostra relevante, inclusive para trazer o tema da inovação e empreendedorismo mais para o centro de discussões e debates.